HELOISA PRADO
A PASSAGEIRA
O alto-falante da rodoviária anunciava a saída dos ônibus naquele horário.
O motorista já ligava o motor quando dona Deolinda, num vestido azul coberto de conchas imitando o fundo do mar, bate na porta.
-Deixa eu entrar. – grita para o homem que abre de imediato a porta.
-
A senhora tem passagem?
-
Tenho, mas é para 8 horas.
-
Esse ônibus é das 7 horas. A senhora vai ter de esperar o seu horário.
-
Mas eu estou vendo lugar vazio, e já que estou aqui...
-
Não posso fazer nada, isso é com o fiscal.
-
Que está acontecendo? – o fiscal pergunta.
-
Quero viajar nesse ônibus. – ela mostra a passagem para o fiscal.
-
Esse ônibus já deveria ter saído, a senhora espera o das 8 horas.
-
Eu vou nele ou ninguém sai daqui.
-Manda essa velha daqui, tenho de voltar ao Rio ainda hoje. – fala um rapaz de cara emburrada.
O fiscal, só por causa do comentário, decide trocar a passagem de Deolinda. Tudo resolvido ela entra e vai sentar do lado do rapaz mal-educado.
-Sei que sou velha, mas não precisava dizer, eu também tenho pressa de chegar ao Rio, vou voltar ainda hoje lá pela tarde.
-Não quero conversar. – fala o homem ríspido.
-Você mesmo mandou que viesse aqui.
-A senhora entendeu tudo errado, eu falei DAQUI.
-Não é a mesma coisa: aqui, daqui.
-Sem conversa, tá?
-Não consigo viajar sem conversar.
-Então vá pra outro lugar.
-Não tem mais nenhum lugar vazio, eu vi.
-Que é que eu fiz! Já estou puto.
-Que é isso menino? Qual o seu problema?
-Não tenho problema e se tivesse não ia contar pra senhora.
-Por quê? Se abra comigo, você não me conhece, não vai pagar nada e seja lá o que for, é só botar pra fora e aí acaba a raiva.
-Que raiva, da onde a senhora está vendo raiva em mim?
-Essa expressão na sua testa é de raiva. – toca no rosto dele - Vai falando, sou toda ouvidos.
-Vou trocar de lugar com alguém. Quero ficar só com meus botões.
-Meus botões? Isso é coisa de velho. – ela olha pra ele com doçura.
-É, realmente estou ferrado.
-Feche os olhos e comece a falar, estou ouvindo.
- Alguém que trocar de lugar comigo? Preciso de silêncio. – pergunta ele já de pé dirigindo os demais passageiros.
Um silêncio se fez, mostrando que ninguém estava interessado em mudar de seu lugar.
-Como é o seu nome? O meu é Deolinda, mas pode me chamar de Linda.
-Linda? Só me faltava essa.
-Se não quiser dizer seu nome vou chamá-lo de Mané.
-Meu Deus!
-Relaxe, vai fazer bem. Aconteceu alguma coisa pra tanto azedume, vai, fala?
Depois de quase quinze minutos “Mané” resmunga. Deolinda olha pra cara dele e sorri. Encosta sua mão na mão dele e não vê rejeição. Cantarola uma canção com a boca fechada. De repente “Mané” começa a falar.
-Queria surpreender e fui surpreendido. Encontrei minha namorada dormindo com outro cara. Imagine, pego folga extra pra estar com ela e ela faz extra na cama com outro. Vou acabar com a raça dos dois, logo hoje que deixei a arma no quartel.
-É militar?
-Sou. Troquei com um colega pra vir até aqui e passo por esse vexame. Safada. Piranha. A sujeita não merece viver.
-Por que não?
-Porque não o quê?
-Ela não merece viver? Só porque estava com outro?
-Ela me traiu, me botou chifres.
-Ah! Perguntou a ela porque fez isso?
-Não, se perguntasse não iria responder.
-É marido dela?
-Sou o homem dela.
-Parece que não é mais.
-Ela jurou amor eterno.
-Morando em cidades diferentes?
-O que isso tem a ver? Eu trabalho no Rio e ela em Macaé.
- Mané, só o amor une as pessoas. A paixão queima, o ciúme adoece, a insegurança só vive falando ao ouvido, resumindo: o amor não convive com os três.
-Ta querendo dizer que não amo aquela vagabunda ou que ela não me ama?
-É, vocês só pensavam no prazer do corpo.
-Ela é muito linda e sensual.
-Viu? É verdade então, se fosse amor você diria em primeiro lugar: eu a amo, ela é maravilhosa.
-Eles merecem um tiro na cara.
-É a primeira vez que foi traído?
-Claro, e a última.
-Já traiu?
-Nunca.
-Será? Pense um pouquinho.
-Se estou com uma pessoa , sou fiel.
-Pense um pouquinho mais.
A conversa foi um verdadeiro duelo até quase chegar à ponte entre Niterói e Rio.
-Preste atenção e me diga: o que vê nessa ponte? Pense.
-Que tem uma porção de carros.
-O que mais?
-É muito longa.
-Mais o quê?
-Tem muita água por baixo.
-E...
-Une duas cidades.
-Hummm.
-Tem alto e baixo, faz curva, tem várias saídas...
-Está entendendo. Bom.
O rapaz começa a rir quando o ônibus chega à plataforma e se levanta pra pegar sua bolsa de viagem que está no porta bagagem. Quando olha para o lado procurando aquela velha que se chamava Linda, não vê ninguém. Desce e pergunta ao motorista pela velha tagarela, pois queria agradecê-la e convidá-la para um suco.
-Que velha rapaz? Você viajou sozinho, eu heim! Cada maluco.
O rapaz surpreso fica olhando para o nada.
-Meu nome é Rafael, Linda!
Ao descer do ônibus no Leme, Rafael olha para o mar e vê um ambulante no calçadão estendendo uma canga para uma garota, com as estampas do vestido de Linda.
Resolve se aproximar dela e se apresenta:
- Rafael.
- Linda. – ela sorri.